Por tratar de for irônica um Magistrado na blitz da Lei Seca, uma agente de trânsito foi condenada a indenizar o magistrado João Carlos de Souza Côrrea por danos morais. Ele havia sido parado numa blitz quando voltava de um plantão judicial.
Ao julgar o processo, na 36ª Vara Cível da Capital condenou a agente a indenizar em R$ 5 mil ao juiz.
A agente apelou da decisão. Entretanto, a 14ª Câmara Cível do TJ considerou o recurso improcedente e manteve a sentença.
"Em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa", disse o acórdão.
Abaixo a íntegra do acórdão:
14ª CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RJ
APELAÇÃO CÍVEL
PROCESSO Nº 0176073-33.2011.8.19.0001
APELANTE:
LUCIANA SILVA TAMBURINI
APELADO: JOÃO CARLOS DE SOUZA CORREA
RELATOR: DESEMBARGADOR JOSÉ CARLOS PAES
APELAÇÃO
CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. OFENSA PERPETRADA CONTRA MAGISTRADO. DANO MORAL IN
RE IPSA.
1.
A autora, ao abordar o réu e
verificar que o mesmo conduzia veículo desprovido de placas identificadoras e
sem portar sua carteira de habilitação, agiu com abuso de poder, ofendendo
este, mesmo ciente da relevância da função pública por ele desempenhada.
2.
Ao apregoar que o demandado era
“juiz, mas não Deus”, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem
como do que a função representa na sociedade.
3.
Não se discute a natureza humana do
servidor público investido de jurisdição, entretanto, restou evidente, no caso
em análise, que a apelante pretendia, com tal comportamento, afrontar e enfrentar
o magistrado que retornava de um plantão judiciário noturno.
4.
Não se vislumbra qualquer ilícito na
conduta do réu que importasse em dever de compensar a recorrente pelo alegado
vexame, por ela mesma provocado.
5.
Por outro lado, todo o imbróglio
impôs, sim, ao réu (reconvinte) ofensas que reclamam compensação. Não por ter
sido negado o caráter divino da função por ele desempenhada (por óbvio), mas
pelo tratamento desrespeitoso dispensado ao cidadão que é, somente por ter se
identificado como Juiz de Direito.
6.
O fato ilícito ensejador do dever de
indenizar por parte da autora não reclama prova efetiva do dano, pois decorre do próprio fato
ofensivo, ocorrendo in re ipsa.
7. A
compensação extrapatrimonial de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) foi fixada em
patamar razoável e proporcional à ofensa, devendo ser mantida, também nesse
ponto, a sentença vergastada.
8. Apelo
que não segue.
Trata-se de ação movida por LUCIANA SILVA TAMBURI-NI em face de JOÃO CARLOS DE SOUZA CORREA, através da qual perquire
compensação extrapatrimonial em valor não inferior ao equivalente a 41
(quarenta e um) salários mínimos.
A autora afirma ser servidora pública estadual, ocupando o
cargo de Agente de Trânsito do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de
Janeiro (DETRAN/RJ) e que, no dia 12/02/2011, participou da chamada “Operação
Lei Seca” na Rua Bartolomeu Mitre, no bairro de Leblon, nesta Capital.
Sustenta que, na referida operação, foi abordado o veículo
conduzido pelo réu, que não portava sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
Informa que o demandado também não portava o Certificado de
Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV) e que o automóvel se encontrava
desprovido de placas identificadoras.
Argumenta que diante das irregularidades constatadas, alertou
o demandado da proibição de trafegar com o veículo naquelas condições e que o
bem seria apreendido.
Alega que, irresignado, o réu se identificou como Juiz de
Direito e lhe deu “voz de prisão”, determinando sua condução à Delegacia de
Polícia mais próxima, fato que lhe impôs severos constrangimentos perante seus
colegas de profissão, sobretudo em razão de encontrar-se no estrito cumprimento
de suas funções.
O réu oferta contestação às fls. 60-68 (0063) e reconvenção
às fls. 76-80 (0079), na qual formula pedido indenizatório em face da autora, em razão das
ofensas por ela proferidas contra o réu na mencionada “Operação Lei Seca”.
O Juízo a quo, em sentença de fls. 176-179 (00183),
julgou improcedente a pretensão autoral e condenou a autora ao pagamento das
custas processuais e honorários advocatícios fixados em R$ 1.000,00 (mil
reais), e julgou procedente o pedido reconvencional para condenar a reconvinda
a pagar ao reconvinte a importância de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a título
de danos morais, corrigida monetariamente e acrescida de juros de mora a contar
da data do evento, além das custas processuais e honorários advocatícios da
reconvenção, fixados em 10% (dez por cento) do valor da condenação.
Inconformada, a autora apela às fls. 182-197 (00189) e alega
ter agido no estrito cumprimento de suas funções e que o réu tentou se
prevalecer do cargo de magistrado para se esquivar do cumprimento da Lei, mais
precisamente conduzir veículo sem placa identificadora, não portando sua
Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Assevera não ter proferido qualquer
ofensa ao magistrado, mas somente afirmado que o mesmo “não era Deus” e que
deveria se submeter à Lei.
Contrarrazões às fls. 200-208 (00207).
RELATADOS. DECIDE-SE.
Conhece-se o recurso, pois tempestivo, dispensado o preparo,
presentes os demais requisitos de admissibilidade.
Trata-se de pretensão indenizatória formulada pela autora em
face do réu, em razão de suposto constrangimento experimentado ao receber “voz
de prisão” no desempenho de suas funções laborais, infortúnio que teria lhe
causado severos constrangimentos perante seus colegas de trabalho.
O réu, por seu turno, sentindo-se igualmente ofendido pelo
tratamento a ele dispensado pela autora, ofertou reconvenção formulando pleito
indenizatório em face da autora. O Juízo a quo julgou
improcedente a pretensão autoral e procedente o pedido reconvencional. O julgado não reclama retoque.
E isso, porque, a autora, ao abordar o réu e verificar que o
mesmo conduzia veículo desprovido de placas identificadoras e sem portar sua
carteira de habilitação, agiu com abuso de poder, ofendendo o réu, mesmo ciente
da relevância da função pública desempenhada por ele.
Ora, mesmo que desnecessária a presença de um Delegado de
Polícia para que o veículo fosse apreendido, não se olvide que apregoar que o
réu era “juiz, mas não Deus”, a agente de trânsito zombou do cargo por ele
ocupado, bem como do que a função representa na sociedade. In casu,
mesmo que o réu (reconvinte) estivesse descontente com a apreensão do veículo,
o que é natural, frise-se, inexiste nos autos qualquer notícia de ofensa ou
desrespeito por ele perpetrado em face da autora.
Além disso, o fato de recorrido se identificar como Juiz de
Direito, não caracteriza a chamada “carteirada”, conforme alega a apelante. Tratando-se de uma operação de fiscalização do cumprimento da
Lei nº 12.760/2012 (Lei Seca), nada mais natural do que, ao se identificar, o
réu tenha informado à agente de trânsito de que era um Juiz de Direito.
Outrossim, não se olvide que a prisão fora determinada, não
em razão da apreensão do veículo, mas, sim, pelo desacato da demandante ao
“decretar”, para que todos pudessem ouvir, que o “juiz não era Deus”.
Ora, não se discute, nem se poderia imaginar uma discussão a
respeito da natureza humana do servidor público investido de jurisdição,
entretanto, restou evidente, no caso em análise, que a autora pretendia, com
tal comportamento, afrontar e enfrentar o magistrado que retornava de um
plantão judiciário noturno.
Dessa maneira, em defesa da própria
função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar
a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela
representa.
Desse modo, não se vislumbra qualquer ilícito na conduta do
apelado que importasse em dever de compensar a autora pelo alegado vexame, por
ela mesma provocado, frise-se.
Por outro lado, todo o imbróglio impôs, sim, ao réu
(reconvinte) ofensas que reclamam compensação. Não por ter sido negado o
caráter divino da função por ele desempenhada (por óbvio), mas pelo tratamento
desrespeitoso dispensado ao cidadão que é, somente por ter se identificado como
Juiz de Direito.
Nesse ponto, ressalte-se que o fato ilícito ensejador do
dever de indenizar por parte da apelante não reclama prova efetiva do dano,
pois decorre do próprio fato ofensivo, ocorrendo in re ipsa.
Colha-se, por oportuno, a seguinte lição do Desembargador
Sergio Cavalieri Filho:
19.4.3 A prova do dano moral
(...)
Neste ponto a razão se coloca ao lado daqueles que entendem
que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito
em si. Se a ofensa é grave e de repercussão, por si só justifica a concessão de
uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Em outras palavras, o dano moral
existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de
tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral
à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti,
que decorre das regras da experiência comum. Assim, por exemplo, provada a
perda de um filho, do cônjuge, ou de outro ente querido, não há que se exigir a
prova do sofrimento, porque isso decorre do próprio fato de acordo com as
regras de experiência comum; provado que a vítima teve o seu nome aviltado, ou
a sua imagem vilipendiada, nada mais ser-lhe-á exigido provar, por isso que o dano moral está in re ipsa;
decorre inexoravelmente da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que, provado
o fato, provado está o dano moral.1
1 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de
responsabilidade civil, 6ª edição. Rio de Janeiro: Malheiros, 2005, p. 108.
2 BRASIL. TJRJ. EMBARGOS INFRINGENTES. Processo 0065634-33.2003.8.19.0001. DES. JOSE CARLOS PAES.
DECIMA QUARTA CAMARA CIVEL - Julgamento: 17/01/2007.
Nesse sentido, colaciona-se o seguinte precedente desta
Corte:
EMBARGOS INFRINGENTES. DANO MORAL. QUANTUM DEBEATUR. 1. O
arbitramento do valor reparatório pelo dano moral há de ajustar-se aos limites
do razoável, uma vez que a condenação não deve atuar como meio de
enriquecimento, mas como compensação pessoal da parte ofendida. 2. O valor de
R$ 30.000 (trinta mil reais) é suficiente para reparar o dano, posto que
compatível com os transtornos de que fora vítima o demandante, os quais fogem à
normalidade dos meros aborrecimentos do cotidiano. 3. Não se aplica o art.
1º-F da Lei 9494/97 a todas as condenações impostas contra a Fazenda Pública,
uma vez que o dispositivo se refere às condenações para pagamento de verbas
remuneratórias devidas a servidores e empregados públicos, portanto, fora da
hipótese dos autos. Não provimento dos embargos infringentes. 2
Passa-se à análise do quantum debeatur.
O artigo 5º, inciso V, da Constituição da República assegurou
a indenização por dano moral, mas não estabeleceu os parâmetros para a fixação
deste valor. Entretanto, esta falta de parâmetro não pode levar ao excesso,
ultrapassando os limites da razoabilidade e da proporcionalidade.
A regra é a de arbitramento judicial e o desafio continua
sendo a definição de critérios que possam nortear o juiz na fixação do quantum
a ser dado em favor da vítima do dano injusto.
A reparação do dano moral como forma de compensar a agressão
à dignidade humana, entende-se esta como dor, vexa-me, sofrimento ou
humilhação, angústias, aflições sofridas por um indivíduo, fora dos parâmetros
da normalidade e do equilíbrio, não deve servir como causa de
enriquecimento indevido, a fim de que não se banalize o dano moral e promova-se
sua industrialização.
Em razão disso, havendo dano moral, a sua reparação deve
atender aos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, como já afirmado,
por representar uma compensação e não um ressarcimento dos prejuízos sofridos,
impondo ao ofensor a obrigação de pagamento de certa quantia de dinheiro em
favor do ofendido, pois ao mesmo tempo em que agrava o patrimônio daquele,
proporciona a este uma reparação satisfativa.
No caso em análise, a compensação extrapatrimonial de R$
5.000,00 (cinco mil reais) foi fixada em patamar razoável e proporcional à
ofensa, devendo ser mantida, também nesse ponto, a sentença vergastada.
Por tais fundamentos, conhece-se o recurso e a ele se nega
seguimento, com base no artigo 557, caput, do Código de Processo Civil.
Rio de Janeiro, 22 de outubro de 2014.
DESEMBARGADOR JOSÉ CARLOS PAES
RELATOR